Outras são as causas, ainda que as mesmas

A obra Androides sonham com ovelhas elétricas? faz parte do que se convencionou denominar “ficção científica soft”. Integrante da literatura fantástica, a ficção científica não pode ser definida através de uma fórmula simples por motivo de sua heterogeneidade, mas, de maneira geral, tem como base uma visão materialista do Universo e organiza-se a partir de três formas: histórias sobre viagens pelo espaço, pelo tempo e sobre tecnologias imaginárias (Roberts, 2018, p. 25). É nesse terceiro ramo que se concentram nossas considerações sobre a narrativa de Philip Dick. Servindo de campo de experimentação de construção de outros mundos, de fabricação do real e ampliando horizontes de recepção, a FC passou a ser vista, sobretudo a partir do século XIX, como uma forma visionária, um exercício de leituras de futuros da humanidade. Interessa-nos, entre essas narrativas que descortinam horizontes, as que são voltadas à interrogação da condição humana, pois através delas “acabamos vendo nossas próprias condições de vida em uma perspectiva nova” (Patrick Parrinder apud Roberts, 2018, p. 37).

Nosso debate enfatiza a obra de FC como uma forma simbólica (Cassirer, 2001), a qual se enraiza em imagens míticas e simbólicas, a despeito de cada época tingi-las com as transformações técnicas, narrativas e axiológicas de seu tempo. A hipótese que vimos sustentando em nossas pesquisas é a de que as obras literárias, enquanto formas simbólicas, participam ativamente da construção da realidade, trazendo à luz expressões complexas do imaginário coletivo e individual, as quais atuam na ampliação de visões de mundo e, conforme Almeida (2011), projetam novos modos de existência e propiciam a compreensão de si – aspectos pouco recorrentes entre as formas simbólicas mais redutoras e doutrinárias. Logo, distanciamo-nos das concepções que tratam as obras literárias como simples construções fantasiosas ou falaciosas apartadas do real. Ao lado disso, no lugar da reafirmação das diferenças entre ficção e ciência, interessa-nos identificar quais aspectos elas têm em comum e de quais maneiras podem interfecundar-se. Afinal, se é verdade que a literatura pode se apropriar de conteúdos científicos para construir suas ficções, também não é menos verdade que, na construção de seus raciocínios, a ciência, enquanto scientia, conhecimento, ou criação imaginativa, lance mão da ficção, constituindo-se como uma ficção do conhecimento, cujo valor é proporcional à refutabilidade (Roberts, 2018, p. 44).

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